A força da Tradição…
Não me lembro de quem escreveu
estas palavras:
… É enorme. Podem os homens mudar
os nomes das ruas, das praças ou dos becos, que o vulgo continuará a chamar Rua
Direita à mais tortuosa rua da cidade e a designar pelo seu antigo nome, às
vezes velho de séculos, as curvas, as encruzilhadas, tudo o que na toponímia da
aldeia, da cidade, da região, ganhou fixação duradoura na memória das gerações.
Temos exemplos disto na nossa
terra. Ali, naquele trecho que da casa comercial de Américo Gonçalves dos
Santos segue para Beduído, a uns 15 a 20 metros do estabelecimento, há um ponto
que eu sempre ouvi chamar a «Laranjeira Azeda». Tal nome decerto resultou de uma
laranjeira azeda que ali existisse, no Passal dos priores. E suponho mesmo que
tal árvore é a que ali ainda existe, tombada, de tronco carcomido e vèlhinha,
tão vèlhinha, que não se aguenta direita, como uma pessoa que, sob o peso dos
anos, não se mantém de pé. Sabida a longevidade que as laranjeiras atingem, não
me repugna acreditar que aquela árvore, que ali jaz, ainda dando frutos, seja a
mesma que, há mais de 70 anos, deu o nome por que ainda hoje é conhecido o
local.
Outro sítio nas mesmas condições
é aquele onde se cruza com a estrada 16-2, o troço que vai da antiga fonte de
chafurda de Fontes e que é vulgarmente conhecido por «Val de Carneiro». De onde
lhe vem tal nome? Ninguém o sabe, creio.
A encruzilhada, perto da qual
fica a «Casa do Povo», é conhecida por «Senhor dos Aflitos». Haverá alguém que
me possa elucidar sobre a origem de tal designação? Palpita-me que deve haver
qualquer coisa de interessante na origem deste nome.
Entre a «Laranjeira Azeda» e o
«Senhor dos Aflitos», na curva do muro que veda a propriedade do Sr. Eduardo
Lemos, foram colocadas umas Alminhas,
creio que no tempo do Pároco Padre Miguel, as quais, pela inscrição que nelas
foi colocada, vejo que são designadas por «Alminhas do Chão da Cruz». Confesso
ignorar que algum dia ali tivesse havido essas alminhas, e louvo o zelo e
diligência daquele sacerdote em te-las descoberto da poeira do tempo e
assinalado com um monumento novo, reatando assim o fio de uma tradição que se
desvaneceria se o restauro não fosse feito.
O outeiro que se levanta defronte
da igreja matriz é conhecido por «Alto da Igreja Nova». Poucas pessoas haverá
hoje em Alquerubim que tenham sido contemporâneas de tal baptismo. Ele deriva
da circunstância de ter sido destinado a erigir-se ali uma nova igreja matriz,
que viria substituir a antiga, que naquele tempo era um templo sem elegância e
já se encontrava muito necessitado de reparação. Neste jornal já foi feira uma
referência a isto pelo erudito autor dos «Retalhinhos Históricos». Ainda lá se
conservam, no estado de abandono definitivo de há mais de 60 anos, os caboucos
que foram abertos para demarcação do edifício, que ficaria sendo uma das mais
notáveis, se não a mais notável, pela situação e linhas arquitectónicas, das
igrejas destas redondezas.
Abandonada a ideia da construção
do novo templo, foi resolvido reparar o antigo, que, diga-se também, ficou
sendo um dos mais lindos da diocese de Aveiro. Foi pena que não ficasse no alto
do outeiro, que ficou sendo conhecido pelo «Alto da Igreja Nova», designação
que se tem conservado através dos anos e creio que se conservará pelos séculos
fora.
Logo ao ultrapassar o edifício
das Escolas Primárias Centrais, na estrada para Albergaria, o terreno à
esquerda, hoje aproveitado como terra de cultura, é conhecido pelo «Hospital».
Também já aqui fiz referência a isso num dos meus Recordandos. Foi ali construído, há mais de 70 anos, o edifício
para um hospital. Não chegou a acabar-se, por falecimento do doador, e mais
tarde foi demolido, mas o sítio sempre ficou sendo conhecido por «Hospital».
Isto seria um nunca acabar. A
imaginação popular é prolífera na criação de motivos que, uma vez erigidos na
mente das populações, ficam anos e anos, séculos e séculos, a atestar a
existência de factos que muitas vezes não passam de uma promessa, de um desejo,
de uma aspiração.
Todos os lugares da freguesia têm
destas recordações toponímicas, e se eu estivesse mais novo, ainda me lançaria
à tarefa de organizar uma colectânea que colheria da tradição. Um ponto que não
me escaparia de averiguar na sua origem é o de «Pica-Boi», acolá no alto do
Fial de Cima, lugar cheio de poesia, como é toda a zona por onde se estende o
Fial (de Baixo e de Cima), e onde todos os anos se realiza uma romaria aonde
acorre metade da mocidade da freguesia. Por que razão foi dado ao aprazível
sítio um tão esquisito nome?
Este e muitos outros eu
procuraria averiguar, mas isso demanda esforço com que já não posso.
(in Mensagem de 15 de março de 1961)
António Augusto de Miranda
2 comentários:
Escreve o avô, a propósito do Alto da Igreja Nova: "... que ficou sendo conhecido pelo «Alto da Igreja Nova», designação que se tem conservado através dos anos e creio que se conservará pelos séculos fora."
Na verdade, pelo menos ainda agora em 2020, aquele local é conhecido por este nome.
Há um errito em "Neste jornal já foi feita uma referência a isto pelo erudito autor dos «Retalhinhos Históricos»".
Enviar um comentário