Recordando, novembro de 1957


Isto de viajar de omnibus (carros para todos), tem as suas vantagens: convive-se mais intimamente com o povo. Mal sabem os senhores que pairam lá no alto da sua grandeza, quer se trate de grandeza alicerçada em dinheiro, quer no poder, quanto perdem. Umas vezes, é a mágoa de ver ou ouvir aquilo que por doloroso ou repugnante estimaríamos não nos chegasse aos sentidos. Mas a maior parte das vezes (e felizmente) ouvem-se coisas que deleitam, umas pela sua simplicidade, outras pelo cómico e pitoresco.
Há dias, entrou num desses carros uma mulher do campo, que se sentou ao lado de uma senhora (chamo-lhe assim, para a diferençar da outra pelo trajo e certa instrução que as colocavam em nível diferente). Eram conhecidas, pelo colóquio que logo se estabeleceu.
— Então, minha senhora, como passou mai-la família? — perguntou a que entrou.
— Obrigada. Tenho andado engripada e os meus pequenos também a apanharam; mas, graças a Deus, todos estão já restabelecidos. E você e a sua gente?
— Ai! Deixe-me cá, minha senhora! O meu homem lá está com a ciática que o não deixa trabalhar há quatro dias. Eu ando cheia de medo, porque dizem que aquilo se pega e entrando numa casa corre a todos. Os pequenos também já a tiveram, mas, graças ao Senhor, já estão melhorzinhos.
— Isso não é ciática, senhora Maria. Isso é…
— Não é a ciática? É, minha senhora, é aquela doença da moda, que anda por í…
— É a “asiática”. É uma gripe nova, que por sinal traz os médicos às aranhas, porque se manifesta por formas diversas. Chama-se asiática por nos ter vindo da Ásia. Ciática é outra coisa: é uma dor que se manifesta num nervo das pernas, chamado ciático.
— eu, lá desses latins não sei, minha senhora. Eu ouço chamar-lhe ciática, à tal doença qie tem andado por í. Lá de onde ela veio, não sei. Tenho ouvisto contar que aqui há muitos anos, quando eu era menina, andou aí a “espanhola”, que matou muita gente.
— É isso mesmo. A espanhola chamava-se assim por ter vindo da Espanha. A espanhola é da Espanha; a asiática é da Ásia, e assim por diante.
— Ai, minha senhora, mas esse nome de Ásia ou lá o que é, é que eu nunca tinha ouvisto. É coisa nova?
— Não senhora: a Ásia é uma parte do mundo — por sinal a maior, que fica lá para os lados de onde o sol vem.
— T’arrenego, mafarrico? Então o sol é da mesma terra da tal doença?
— O sol não é de parte nenhuma: vem daqueles lados quando nos aparece de manhã. Ele aparece em todos os pontos da terra todos os dias, de nascente para poente. Como a Ásia fica para o nascente, é por isso que eu digo que o sol vem dos lados da Ásia.
— Quem não sabe é como quem não vê, minha senhora.
E o diálogo foi continuando, tendo as criaturas trazido à balha o satélite que os russos lançaram ao ar e que anda a passear á roda da bola do mundo, como a lua. Veio até o segundo, lançado há pouco, o qual parece que leva um cão dentro dele, para experiências.
A tia Maria, que não teve um assombro naquele dia, está livre desse mal. Eu passei a lembrar-me de quando passei a tal terra de onde a asiática veio. Parece que ela é originária de Singapura, linda cidade de mais de 500 mil habitantes, situada na Malásia, a que a coroa inglesa concedeu há pouco a autonomia política, tornando-se por isso um Estado independente. Cidade extensa, com uma parte ocupada por uma zona verdejante em que se contemplam muitas variedades da riquíssima e exuberante flora da Indonésia, ali vi, deslumbrado, as mais famosas orquídeas que na vida tenho contemplado. As orquídeas, que entre nós só à custa de muito trabalho e muita despeza se conseguem obter, em estufas, porque não resistem ao frio, naquelas terras crescem ao ar livre, apenas convindo atenuar o ardor do sol com caniços produzindo uma luz branda, num ambiente quente e húmido. Vi-as em Macau, nos jardins, trepando como serpentes. Vi-as em Ootacamundi (vulgarmente pronuncia-se abreviadamente Ootee), Estado de Mysore, antiga Índia Inglesa, hoje União Indiana. Aqui, elas apresentam os seus ricos coloridos, mas falta-lhes a opulência que mostram na Indonésia, porque a cidade de Ootacamundi fica no alto dos Nilgiri, que ultrapassam os dois mil metros de altitude; e mesmo assim, são cultivadas em estufa, porque as altitudes, mesmo nas regiões tropicais, produzem temperaturas frias, a que as orquídeas não resistem.
(in Mensagem de 15 de novembro de 1957)

António Augusto de Miranda

2 comentários:

Mário Pinho de Miranda disse...

Duas notas:
1) A propósito de Singapura, apetece dizer: quem te viu e quem te vê
2) A propósito de orquídeas: diz o avô «que entre nós só à custa de muito trabalho e muita despesa se conseguem obter, em estufas, porque não resistem ao frio, naquelas terras crescem ao ar livre, apenas convindo atenuar o ardor do sol com caniços produzindo uma luz branda, num ambiente quente e húmido». Pois bem, a minha sogra tem, sei lá, uns 50 vasos de orquídeas criadas ao ar livre aqui no Minho! Embora dêem, de facto, muito trabalho

Recordando disse...

Mário, não conheço Singapura mas imagino que estará mesmo muito diferente daquilo que o avô conheceu.
Quanto às orquídeas... apenas sei que dão bastante trabalho!