Recordando, novembro de 1960


A propósito de ensino
Nos tempos em que eu frequentei a escola primária, não havia a obrigatoriedade da frequência que há hoje. As crianças, não sendo obrigadas a ir à escola, não vão mesmo, salvo raras excepções. O resultado era a frequência, naquele tempo, ser deminuta. As poucas que frequentavam a escola iam a ela porque os pais as mandavam. Mas eram relativamente poucas, porque havia, nesse tempo (e suspeito que ainda os haja) pais que entendiam e diziam que as raparigas não precisam de saber ler, porque esta prenda só serve para elas comunicarem com os namorados, o que nem sempre é o melhor para a sua felicidade. Isto eram ideias rurais, toscas, de gente que nunca viu mundo. No entanto, já La Palice, que foi marechal de França e viveu no século 16, dizia (segundo corre) que uma mulher não precisa de saber mais que o necessário para distinguir as ceroulas do marido das calças do mesmo.
Por isso, naquele tempo em que eu ia à escola, primária (e se não ia, apanhava mais palmatória em casa do que na escola) os rapazes frequentavam-na em maior número do que as meninas. Esta a razão por que bastavam os dois professores que havia nas duas escolas de Fontes, que serviam toda a freguesia, constituída por seis lugares, além de que havia ensinadores particulares.
Vieram novas ideias e novas necessidades, e o Estado houve por bem decretar a obrigatoriedade de os pais mandarem à escola os filhos em idade escolar.
Mas a rotina era muito forte; e as necessidades da presença das crianças em casa, onde, em certa medida, ajudam os pais na labuta da lavoura, levavam à inobservância da lei, desacompanhada esta, como era, da respectiva punição. De que valia a lei, se ela não estabelecia sanções para os transgressores?
Até que se reconheceu a necessidade de as decretar, e assim se entrou em regímen de combate frontal ao analfabetismo, que nos envergonha por via dos nossos emigrantes perante os de outras nações. Isso, e a criação de duas escolas (uma em Páus, já há anos, outra no Fial, recentemente criada), vieram ao encontro das necessidades da população. E verifica-se um facto interessante: o Fial, só por si, tem uma população em idade escolar que impôs a criação da sua escola; Páus e Beduido, pelo número de crianças nas mesmas condições, impuseram a criação de mais um lugar de professor; e os lugares de Fontes, Ameal e Calvães, com a população geral muito superior à da área de qualquer daqueles, não tem crianças que justifiquem a colocação de mais de dois professores nas escolas centrais.
A que se deverá a anomalia?
À emigração não deve ser, porque os lugares de Fontes, Ameal e Calvães, não alimentam mais a emigração do que os restantes. O Ameal, só por si, deve ter tanta população como Fontes e Calvães. Eu falo por palpite, mas julgo não andar longe da verdade. A que será devida, pois, aquela anomalia?
Que o averigúe quem quiser. Eu limito-me a constatar factos.
Quanto ao ensino particular, este, no meu tempo de criança, não era proibido. Tal ensino era uma lástima, e os métodos empregados para a eficiência do ensino bradavam aos céus. Havia em Alquerubim um indivíduo que se arvorou em professor primário, abrindo escola a 120 reis mensais por cabeça (seis vinténs, como se dizia naquele tempo).
Este «professor» não tinha competência de espécie nenhuma. Nem sabia ler correntemente e com correcção, nem possuía a mais rudimentar noção ou aptidão pedagógica. Os seus processos alicerçavam-se no terror. No entanto, havia pais que mandavam os filhos para aquela «escola», que era paga, dando-lhe preferência à escola oficial, que era gratuita e onde os filhos eram tratados com humanidade. Entregavam-nos a um verdadeiro tirano, destes que são tanto mais fortes, quanto mais fracos são os que lhes caem nas mãos.
Quando adregava eu ir ao cabeleireiro, à hora em que ali se juntavam vários fregueses, à espera de vez, era certo encontrá-lo ali, de perna traçada, olimpicamente refestelado numa cadeira, a ler o jornal «O Século», porque outro, que me lembre, não chegava a Alquerubim.
Que barbaridades na pronúncia das palavras, meu Deus! E era a esta criatura que certos pais confiavam os filhos para que os ensinasse!
Tinha aquela pretensão no falar, própria de muitos ignorantes que se supõem sábios. Um dia, o José do Jorge deu uma queda na bicicleta, numa ladeira, indo parar acima do silvedo da margem da estrada, arranhando-se todo e saindo das silvas todo ensanguentado e a mancar. Fazia lástima ver o bom do rapaz, embora o seu estado não oferecesse quaisquer preocupações: um pouco de tintura de arnica para desinfectar os arranhões, e pronto, o José do Jorge podia apanhar outra.
Andados uns passos, encontrou o «professor» primário particular, que, cofiando os bigodes, lhe lança esta tirada, sublinhada por um sorriso irónico:
— Então, José! A consequência da ladeira ia-te saindo funesta?
(in Mensagem de 15 de novembro de 1960)
António Augusto de Miranda

2 comentários:

Maria José Miranda disse...

Adregar! Vou tentar não esquecer esta palavra (verbo), nova para mim. Tem muita pinta! Aposto que quando a usar farei muito melhor figura que o tal professor “consequente”

josé miranda disse...

Falou-me a Isabel, há dois ou três anos, nesta palavra, adregar e numa outra, engrilar, que desconhecia depois de as ouvir aos seus clientes. Como de costume, chegada a casa perguntava a seu pai o significado destas (pensando ser palavras utilizada na região)
A primeira parece óbvia mas a segunda nem tanto. Parece que tem mesmo a ver com a posição dos olhos dos grilos que, por serem colocados na frente da cabeça e bem juntos, se assemelha à nossa posição quando prestamos muita atenção a um objeto, segundo o Pompeu,