Há dias, passando em Amarante,
contemplei por momentos em delicioso quadro campesino que me recordou os bons
tempos em que o Vouga era um rio de água pura, que servia para criar peixes,
para lavar roupa, para tomar banho e, até, para beber. O Tâmega, que é o rio
que atravessa Amarante, apresenta ali um aprazível areal, onde as crianças e os
adultos brincam e se divertem e as lavadeiras lavam a roupa, tudo na mais
franca alegria, dando à vila um carácter pitoresco que valoriza a sua feição
turística. Depois, em Chaves, que o mesmo rio corta de lés a lés, a mesma
evocação do Vouga me assaltou o espírito, e eu, dotado de uma sensibilidade
apurada para as coisas da natureza, tive necessidade de disfarçar a minha
comoção para ocultar uma lágrima.
Na verdade, causa tanta tristeza
comparar o rio Vouga de hoje com o de outros tempos!
Ele era o mais procurado meio de
entretenimento, na época calmosa, pela mocidade das terras que atravessa. Ali
acorriam todos, novos e velhos, rapazes e raparigas, a tomarem banho e a
saborearem, nos areais, os farnéis de que iam providos, tudo se realizando no
meio da mais esfusiante alegria de que cada um era possuído.
As lavadeiras eram notas
destacadas na policromia deste rio maravilhoso, cujos sinceirais, afamados pela
sua umbrosidade, fazem do Vouga um dos rios mais poéticos de Portugal. No lugar
da Ponte da Rata, aqui a dois passos, junto da confluência do Vouga com o
Águeda, havia um vasto areal onde aos domingos se juntava uma multidão para ali
gozar o descanso do dia, uns entretendo-se em folguedos próprios da idade,
outros presenceando, sossegadamente, o que viam e ouviam, e que lhes encantava
os olhos e os ouvidos. Eram danças, eram descantes, eram merendas saboreadas
pela roda dos convivas…
Todos os anos ali vinham
instalar-se pessoas doentes da pele que tinham fé no poder curativo das águas
do rio, portadoras da virtude que lhes emprestam as termas de S. Pedro do Sul.
No rio vivia uma abundante fauna que,
em certa medida, era o recurso alimentar de muita gente. Muito peixe se vendia
pelas portas, pescado nas águas do rio por pescadores, profissionais ou não, a
galricho, ou de mergulho e à unha.
Infelizmente, tudo isto acabou, a
começar da foz do rio Águeda para cima, porque este rio está limpo de mazelas.
A montante da confluência dos dois rios, pode-se afirmar que não há peixes no
verão e que as águas não servem para banho nem para lavar a roupa, porque, há
uns anos para cá, são envenenadas e conspurcadas pelos despejos que nelas
lançam certas empresas instaladas nas margens do rio Vouga ou dos seus
afluentes.
Urge tomar providências contra
este abuso.
Mas este aspecto da região não é
para aqui; e se nele falo é porque veio a talho de foice, como diria D.
Francisco Manuel de Melo. Tal abuso, postergando os direitos de populações
inteiras, tem sido veemente verberado em reclamações, representações e artigos
de jornais. Oxalá tudo isto não caia em saco roto.
O que me interessa aqui é marcar
a diferença que existe entre os rios que conservam todas as suas propriedades
com que Deus os criou, e aquele que, mercê da vontade dos homens, se
transformou num lodaçal infecto, que até é de duvidosa utilidade para regas.
Ainda hoje, 3 de Outubro,
atravessei o Vouga, sobre a ponte da Fontinha. Fiz a travessia a pé e parei a
observar o miserável estado daquela água, outrora tão límpida, tão
transparente, através da qual cintilava a areia sob a luz do sol. Que tristeza!
Que saudades me causou aquele estendal de lodo de cor de chumbo, as areias
cobertas com uma crosta negra, como negras são as águas como um lodaçal!
Peixes, se alguns têm escapado à hecatombe, conservam-se refugiados nos pontos
mais profundos, e serão esses poucos que, com a sua descendência, constituirão a
população piscícula, bem pobre, que habitará, no inverno, as águas do outrora
formoso rio Vouga.
(in Mensagem de 15 de outubro de
1957)
António Augusto de Miranda
3 comentários:
A referência a Amarante e a Chaves faz-me lembrar que o avô frequentava com regularidade as termas na época de verão. Recordo-me de, na companhia do meu irmão Manel, termos acompanhado o motorista do meu pai nos SMGE a Vidago nos primeiros dias de Setembro para lá irmos buscar o avô
Não tinha ideia de que o rio Vouga já estivesse tão poluído em 1957!
Mário, lembro-me que o avô costumava ir para Vidago, fazer tratamento de águas, por causa do problema que tinha tido no estômago. Também me lembro bem que geralmente eram os teus pais que levavam e iam buscar o avô. Ainda tenho alguns dos postais que nos escrevia!
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