Padre Jorge de Pinho Vinagre, de Aveiro, era
homem de boa sociedade. Todas as noites, depois da ceia, ia jogar o voltarete
com a sua roda de amigos, no «Grémio Aveirense», que funcionava no edifício da
Rua de José Estevão, onde funcionou, no primeiro andar, a Agência do Banco de
Portugal e nos baixos a Caixa Económica de Aveiro, e onde está hoje instalada a
Escola de Professoras Primárias.
Isto foi desde os primeiros anos,
desde que o conheci. Muito amigo de minha família, fui entregue aos seus
cuidados, e na sua casa residi durante alguns anos, antes e depois de deixar o
seminário. Era professor de instrução primária, tendo estado à frente da escola
de Perrães. Quando o conheci, estava suspenso por causa de uma sindicância ou
inquérito que lhe foi movido por acusações infundadas, como veio a averiguar-se.
Ainda me lembro de, uma noite, lhe aparecer à porta uma enorme multidão munida
de archotes e com música à frente, numa grande manifestação de regozijo,
entrando um grupo dentro de casa a dar-lhe, em nome de toda aquela gente, os
parabéns e os abraços pelo resultado obtido naquela sindicância. Reposto nas
suas funções de professor, foi colocado na escola masculina da freguesia da
Glória que funcionava num prédio situado à entrada da Estrada da Barra, logo
depois da Ponte da Dobadoura, e mais tarde passou para o que fica ao lado da
igreja da Misericórdia, onde hoje funciona uma biblioteca pública.
Pessoa muito relacionada,
tornou-se verdadeiramente popular, principalmente por causa de ser o principal
animador da Banda Aveirense, geralmente conhecida por «Música Nova». Era
regente da orquestra, na qual eu fiz a minha estreia como violinista, serrando o papel do 3.º violino ao lado
do João Baixinho, por alcunha o «Já Disse», a que já fiz alusão numa destas
crónicas. Lembro-me de que uma vez, estava o Padre Jorge a reger a orquestra,
no coro da igreja da Apresentação (matriz da freguesia da Vera-Cruz), mesmo de
fronte de mim, que ocupava a estante da frente (isto foi quando já eu tocava
segundo violino). Nisto, sinto que o arco me era arrebatado da mão e voava
pelos ares, descrevendo uma grande curva e indo cair em baixo, no pavimento da
igreja, no meio dos fiéis. Felizmente não colheu ninguém, porque, de contrário,
seria coisa séria, pois o peso de um arco de violino, caindo com a noz para
baixo, por ser a ponta mais pesada, não deixaria de causar ferimento se
atingisse a cabeça de alguém. Fora o caso que a batuta, enfiando-se no meu
arco, com a violência do movimento do compasso, arrebatou-mo da mão.
Também era um grande nadador, o
Padre Jorge. Parecia insensível à dureza da água fria. Ainda em Dezembro, já as
geadas branqueavam as ervas das beiras do caminho, ia êle muitas vezes tomar
banho no canal das pirâmides.
Possuía uma escopeta de carregar
pela boca e de um só cano, com que se divertia de vez em quando na caça aos
maçaricos e aos borrelhos, que naquele tempo abundavam na Ria. De uma vez, ao
lusco-fusco, viu qualquer coisa num mouchão, que lhe pareceu um bando de
borrelhos pousados. Era a caça que lhe convinha, porque lá atirar para o ar,
não era com êle. Alapardou-se o mais possível e aproximou-se a uma distância
que lhe pareceu razoável ao alcance da arma. Apontou e… pum! O tiro partiu na
direcção dos supostos pássaros. Mas o Padre Jorge, levantando a cabeça,
espreitou e não viu nem um só levantar vôo!
Muito desanimado, nem sequer se
aproximou do local, e deu meia volta em direcção a casa, que ficava longe,
resmungando com os seus botões:
— Ora esta! Ora esta! Eram
torrões, é o que era, e eu confundi-os com borrelhos!
À noite. O Jaime Andias, casado com
uma das sobrinhas, entra-lhe em casa muito risonho, de mãos atrás das costas, e
pôs-se a chalacear com êle:
— Então o padrinho abandona a
caça que mata?
— Não era caça, era uma porção de
torrões, que confundi com borrelhos, por falta de luz.
Então o afilhado (era afilhado de
casamento), sacando detrás das costas uma enfiada de pássaros, oferece-lha,
dizendo:
— Não estão maus torrões, não
senhor, gordinhos como são!
Era mais de uma dúzia de
borrelhos, que o tiro apanhou em cheio, não tendo escapado um só.
Foi um dos mais alegres momentos
da sua vida, aquele.
O Padre Jorge era económico. A
sua grande paixão foi a música e por causa dela arriscou-se a morrer na
miséria. Para que a sua banda sobressaísse, contratou um regente do Porto, de
sobrenome Pereira Viana, músico activo e de valor, que elevou a banda da
«Música Nova» a um apreciável grau de perfeição. Quando duas músicas da mesma
terra se põem à compita, é o demónio. Criam-se partidários de lado a lado, os
ânimos aquecem e as bolsas começam a arder. Assim foi com o bom Padre Jorge. A
certa altura, viu os seus bens hipotecados para garantirem uma dívida de um amante da sua música, dívida que teve de
pagar.
Retirou-se então à vida
particular. Deixou de reger a orquestra e deixou de frequentar o Grémio, do
qual se desligou. Êle possuía duas salinas e três viveiros de peixe. Com o
rendimento destes bens, com a pensão de aposentação de professor e com os
ganhos de serviços religiosos (missas, assistências a funerais, etc.) conseguiu
em poucos anos ressarcir-se, deixando à família uma herança que êle aumentara
com o seu trabalho e espírito de economia.
(in Mensagem de 15 de novembro de
1958)
António Augusto de Miranda
4 comentários:
Três notas:
1) O padre a tomar banho (não interessa o mês) no canal das pirâmides!
2) Borrelho é um passarito pequeno da dimensão do rouxinol
3) Escupeta de carregar pela boca: espingarda sem culatra em que o projéctil (explosivo + buchas + chumbo) é "fabricado" no próprio cano da arma. Literalmente mete-se pela boca do cano bucha, depois a pólvora, nova bucha, antes do chumbo. Daí dizer-se que é de "carregar pela boca"
Estas crónicas narrativas combinam o ponto de vista do narrador com deliciosas dissertações argumentativas e descritivas.
Enternecedora é a recolha e compilação.
Bem hajas Mimi
Olá Mário, verifico que continuas a ser o leitor mais participativo. É bom ler os teus comentários. Muito bom, mesmo.
Quem será este Unknown? Obrigada ao desconhecido. Esta tarefa está a dar-me imenso prazer e creio que é importante divulgar todos estes documentos.
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