Navegar em terra
ESTA vida que levo há 15 dias
aqui, assemelha-se à que se leva a bordo de um navio, e que tantas vezes
experimentei quando nas minhas andanças do Continente para Moçambique, de
Moçambique para Angola, de Angola para a Índia, daqui outra vez para Angola,
para Macau, de novo para Moçambique… etc.. Não foi a dança das horas, mas
bastante mais, porque durou quase 30 anos. Apenas há, entre a vida a bordo e
esta que aqui levo, a fundamental diferença de que, aqui, apenas falta o
balanço do piso, a tornar insuportável, para quem enjoa, a viagem por mar. Nem
sequer faltam, aqui, aqueles grupinhos que se formam nestes aglomerados
prisioneiros e sem ocupação, conversando e dizendo mal uns dos outros; e as
refeições transformam-se num hábito, pela necessidade, não tanto de nos
alimentar, como de preencher o tempo. Se não fora a digestibilidade destas
abençoadas águas, creio que se perderia a vontade de comer, em virtude da
imobilidade dos corpos.
Neste período de 15 dias, eu
teria, em qualquer dos navios modernos que circulam entre África e Lisboa,
feito a viagem até perto de Lourenço Marques. Em 1920, quando tomei o baptismo das navegações marítimas,
viajei no mais moderno e mais veloz dos navios da única companhia que tinha a
carreira de África: o velho «Moçambique», que bem se poderia considerar um
palácio flutuante, pelo luxo e pela estabilidade, gastou, desde Lisboa até
Lourenço Marques, tocando unicamente no Cabo da Boa Esperança, 24 dias! A sua
velocidade regulava entre 12 e 13 milhas por hora — um assombro!
Como isto mudou! De resto, se
fizermos contas, mesmo sem contar pelos dedos, verificamos que são decorridos
41 anos desde que fiz a primeira viagem. Neste lapso de tempo, parece que o
mundo se voltou do avesso e que surgiu um mundo novo que se sobrepôs ao daquele
tempo. Quando recordo a África daquele tempo, a África que conheci em 1920, a
que deixei para sempre em 1948, e as comparo entre si e com a que hoje se
desenvolve, a avaliar pelos relatos dos que chegam e pelo que a imprensa e a
correspondência epistolar e fotográfica me transmitem, eu pasmo como foi
possível uma transformação destas, operada em tão curto lapso de tempo.
Prometi falar-vos do Bié, a
saudosa comarca que chefiei desde 1926 até Outubro de 1929, cuja sede era a
pequenina Vila Silva Porto, condenada, em meu entender, a desaparecer da
aparente cova onde vegetava, pela absorção com que a ameaçava a povoação que
estava a desenvolver-se à beira do caminho de ferro, que lhe passa a uns 5
quilómetros.
Mas recordar Silva Porto daquele
tempo é reviver um lindo sonho, um destes sonhos que às vezes temos, tão
agradáveis, que tornamos a fechar os olhos na esperança de o reatar, e mesmo de
nunca mais acordar, para gozar eternamente tão agradável sonho. Quimeras! O
lindo sonho acabou, nunca mais volta! E se voltasse, se me fosse possível
regressar àquele paraizo na terra, eu não encontraria a vilasinha sertaneja que
lá deixei em 1929, com os seus gordos e perfumados morangos que eram a tentação
dos meus filhos; as rosas coloridas e as rescendentes violetas que eu plantei
no jardim que criei, em frente de minha casa, no largo da Câmara e do Tribunal;
os laranjais produzindo frutos todo o ano, ricos frutos que só encontram
paralelo pelo perfume e casca fina, nas chamadas laranjas da Baía…
Mas que digo eu? Tornei a
perder-me no labirinto das recordações, e também perdi a noção do tempo, e mais
uma vez deixo a palavra reservada
para outra vez, ainda sobre o Bié, fonte inesgotável de deliciosas recordações.
Termas de Vidago, 7 de Setembro
de 1961.
(in Mensagem de 15 de setembro de
1961)
António Augusto de Miranda
4 comentários:
O meu pai encarregou o Sr. Faria, motorista dos SMGE do Porto, de levar o avô para as Termas de Vidago nesse Verão de 1961. Não sei por que razão eu e o Beto também fomos. Almoçámos lá com o avô e viemos da parte da tarde para o Porto.
Luis, recordo-me bem dessa viagem e do calor que estava.
Curiosamente eu e o Manel também fomos uma vez a Vidago buscar o avô com o sr. Faria. Não sei o ano mas terá sido também na década de 60. Aliás já fiz referência a essa viagem numa das primeiras crónicas.
Boa Beto. Ainda bem que confirmas pois já estava a pensar que isto não era mais do que um devaneio do covid.
Mário, se calhar tu e o Manel terão ido buscar o avô enquanto nós fomos levá-lo, pois eu lembro-me bem da viagem de regresso ter sido uma bandalheira…
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