Recordando, setembro de 1960


Um feixe de inutilidades
E cá estamos de novo, meu caro leitor.
Mas o pior é que não sei o que te hei-de dizer, para encher este cantinho que a boa vontade do bom Padre José Pereira tem guardado à minha disposição. Começo a ganhar uma certa repugnância em escrever. As cartas vão ficando de lado, esperando a vez de resposta, e algumas não chegam a obtê-la. Apenas me interessa alguma leitura, que não meta complicações difíceis de decifrar nem cenas movimentadas e emotivas. Leitura leve, de viagens e biografias, é a que mais me agrada. E também de agricultura, sobretudo isto. O que mais me entretém é a terra e o que ela cria. Será que se aproxima o fim? O homem propende para a terra, seu início e seu fim, que o atrai. Nunca achei grande prazer na leitura daqueles que afirmam que a vida animal começou no mar. Deve haver nisso muita fantasia, e gostei sempre muito mais de ler Júlio Verne, porque êsse, fantasiando, tenta aproximar-se da verdade, que muitas vezes está oculta nos recessos da sua maravilhosa fantasia. E de vez em quando, leio-o. Tenho a coleção completa das suas obras, que ainda hoje fariam as delícias da mocidade, se ela se dedicasse ao estudo à cultura do que é bom e belo. Hei-de ver se consigo interessar os meus netos na leitura de Júlio Verne. Há dias, dei com um a ler Emilio Salgari, que, se não atinge a craveira de Júlio Verne, dá aos jovens uma leitura honesta sobre aventuras e viagens.
O que mais peço a Deus — entre muitas coisas que lhe peço — é que não me falte a vista, para poder ler até ao fim da vida. Ler e ver o que preciso. Ler o meu jornal e um ou outro livro que me interesse, e ver o que me rodeia, inclusivamente o bicho da fruta, que me consome a paciência com que Deus me dotou.
Farto-me de ler coisas sobre o combate ao bicho dos frutos, gasto um dinheirão com insecticidas, canso-me a mandar deitar aquelas drogas nas árvores, e com os cuidados precisos para que o jacto do pulverizador não atinja a hortaliça destinada às aves da capoeira, para as não matar, e, afinal, os bichos são sempre os mesmos a esburacar e a emporcalhar os frutos, e, em lugar de matarem os bichos, os insecticidas o que têm feito é matar-me de vez em quando umas aves, que aparecem envenenadas por ingestão das hortaliças conspurcadas pelos líquidos venenosos.
É de uma pessoa desanimar… Mas eu sou um bocado teimoso. Talvez dissesse melhor se dissesse que sou persistente; e, esperançado em encontrar remédio eficaz e assim melhorar a fruta, todos anos experimento novas drogas. De resto, eu preciso de me entreter em qualquer coisa de útil, que nunca fui homem para desperdiçar tempo.
Oh! Caríssimo leitor! Sem dar por isso, enchi dois bons quartos de folha de papel almaço. E enchi-as de inutilidades. Paciência. A vida é cheia delas e com elas muita gente se entretem. Que perdõe o bom Padre Pereira pelo precioso espaço que lhe subtraí, necessário às coisas úteis.
 (in Mensagem de 15 de setembro de 1960)
António Augusto de Miranda

3 comentários:

Mário Pinho de Miranda disse...

A propósito da juventude e da leitura que o avô aqui refere não fui um grande seguidor de Júlio Verne do qual li somente a "Volta ao Mundo em 80 dias" que mais tarde vi no cinema protagonizado, entre outros, pelo David Niven, pelo Fernandel e pelo Cantinflas. Já os livros do Emílio Salgari, que o avô refere, li quase todos. Mas nessa altura, talvez um par de anos mais tarde, os livros de que mais gostei foram os do grande escritor Mark Twain de quem li "As Aventuras de Tom Sawyer" e "As Aventuras de Huckleberry Finn" que existiam na biblioteca do meu pai.
Tenho feito um esforço razoável para que o meu neto leia estes e outro livros bem engraçados mas temo bem que sejam infrutíferas estas tentativas.

Recordando disse...

Mário, certamente não serão infrutíferos esses teus esforços. Mais tarde ou mais cedo ele vai começar a gostar.
Tive muitos alunos, mas mesmo muitos que gostavam mais de ouvir ler do que de ler!
Ainda me lembro muito bem das noites na Vila da Feira em que o avô ia para o quarto dos meus irmãos ler-lhes. Lembro-me muito bem das gargalhadas que ouvia!

Maria José Miranda disse...

Lendo esta crónica fico aGora a perceber por que razão este ano só vou ter 1 pera em três pereiras do quintal onde em tempos o avô travou uma luta imensa contra o bicho! E eu que julgava que eram as alterações climáticas!
Com o vento que tem estado todos os dias vou visitar a pera não vá eu ficar sem ela. Hei-de comê-la